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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Os meninos da Paulista

Como todos, vi com assombro a demonstração de ódio gratuito dos rapazes da Av. Paulista, que agrediram pessoas com uma naturalidade espantosa. O argumento do advogado de um deles, de que eles teriam sido "paquerados" por homossexuais e reagiram, foi, a meu ver, mais uma lâmpada jogada na cara dos supostos homossexuais e na população que repudiou o ato. Imagine se saíssemos agredindo ou matando todos que nos paqueram (homo, trans, bi, heterossexuais...). Seguindo o argumento do advogado, seria de se esperar que, se "paquerados" por uma menina, ela fosse igualmente espancada. Ora, quem não quer se expor, não sai de casa e quem não gosta da paquera, ignora.

Mas o que me preocupa não é só isso. Li a entrevista de um dos pais, na Folha de São Paulo. Trata-se de um ator que afirma que nunca houve intolerância em sua casa. Como mãe, coloquei-me no lugar dele e não pude deixar de sentir uma profunda compaixão.

Se olharmos para o caso como se isolado fosse, estaremos cegos para uma realidade social bem mais ampla. Homossexuais, prostitutas, travestis, mendigos, nordestinos e mulheres são agredidos todos os dias. A intolerância está no bojo de uma sociedade aparentemente pacífica, da suposta cordialidade brasileira. É necessário repudiar cotidianamente os pequenos atos e palavras que colocam um ser como superior a outro. Afinal, por trás da intolerância reside justamente a ideia de superioridade.

Conviver com as diferenças, em especial num país como o Brasil, tão diverso, é um desafio. Normalmente, nos fechamos em guetos e nos aproximamos de quem se parece conosco. Um exercício interessante seria convivermos por alguns dias com quem pensa e vive fora dos nossos padrões. Veremos que todos são humanos, que todos almejam ser felizes e que, surpreendentemente, somos muito parecidos.

A ideia de superioridade deu suporte às mais bárbaras ações humanas. O nazismo talvez seja apenas a mais conhecida. Combater o Hitler que existe em cada um de nós é trabalho diário, de vigilância constante. E, creiam, todos nós temos nosso bigodinho.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Carta ao Rev. Dr. Augustus Nicodemus

Por Cássia Janeiro

Caro Rev. Dr. Augustus Nicodemus, Chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie:


Li o manifesto que o senhor publicou, no qual defende o direito a pregar contra práticas homossexuais. Confesso que ele me deixou com sérias dúvidas e peço-lhe paciência divina para com a minha ignorância.


Estou preocupada com o meu papel de cristã. Em seu manifesto, o senhor reduz as pessoas  - os homossexuais - a uma condição. A fim de fugir da primeira tentação, a da precipitação, procurei compreender suas palavras. No entanto, analisando justamente a minha própria  condição, minhas dúvidas aumentaram ainda mais.


Em primeiro lugar, sou mulher e essa minha condição me parece já me colocar numa espécie de prefácio do Inferno, já que "foi pela mulher que começou o pecado, e é por culpa dela que morremos" (Eclesiástico, 25, 24). Mesmo procurando fazer o bem e tentando ser uma pessoa decente, a condenação me pareceu inexorável, já que "é melhor a maldade do homem do que a bondade da mulher" (Eclesiástico 42,14).


Devo imaginar que sua Universidade não aceita alunas, posto que seria um contrassenso. E, se fossem aceitas, evidentemente haveria de se esperar que passassem por uma "vistoria" e ganhariam uma espécie de certificado de virgindade. Quem sabe, um selinho daqueles que ganhamos quando passamos pela inspeção veicular.


Mas, voltando à minha infeliz condição, além de mulher, estudei, lecionei, em inúmeras ocasiões me manifestei publicamente, como agora, e, pior, muito pior, não sou submissa. Peço-lhe que me oriente sobre como fugir do fogo eterno! Fiquei assustadíssima quando li "que as mulheres fiquem caladas nas assembleias, como se faz em todas as igrejas dos cristãos, pois não lhes é permitido tomar a palavra. Devem ficar submissas, como também diz a lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos maridos em casa" (1 Coríntios, 14, 35-34).


Devo confessar que, além de todos esses pecados, minha mãe é espírita. Embora não professe da mesma crença, "qualquer mulher ou homem que evocar espíritos, será punido de morte" (Lev 20, 6 - 27). Bem, já vi minha mãe evocando esses espíritos. Devo eu mesma aplicar a pena ou recorrer ao senhor ou a um Conselho dos Anciãos para banir minha mãe da vida?


Mas gostaria ainda de dizer algumas palavra sobre os homossexuais. Conheço muitos, homens, mulheres, cidadãos... Um dia alguém disse que os judeus, os ciganos e, pasme!, os homossexuais, eram outra categoria de gente e já conhecemos o final da história. Como é possível que o senhor não tenha aprendido nada? Como o senhor pode pregar a intolerância e se atrever a julgar as pessoas por práticas que não lhe dizem respeito? Quem lhe deu esse direito? Jesus, que afirmou: não julgueis para não serdes julgado?


Confesso que fiquei atordoada quando li seu manifesto, mas meu coração encontrou alívio e juro que pensei com ternura no senhor e em seu manifesto quando li: "Paiperdoa-lhesporque não sabem o que fazem” Lucas 23.34.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O Estado não é quintal de nenhuma Igreja

É com imenso constrangimento que vejo o desenrolar da campanha eleitoral. Inicialmente, pensei que Dilma reunisse, senão experiência eleitoral, atributos profissionais, consistência intelectual e coerência para representar brasileiras e brasileiros no cargo máximo da Nação. Entretanto, o que tenho visto é uma campanha retrógrada, que nos remete à Idade Média.

Igreja e Estado se separaram há tempos. É importante que se respeite igualmente os cidadãos, sejam eles religiosos ou não, crédulos ou incrédulos. Fazer do Estado um quintal religioso é temeroso, especialmente quando consideramos todas as lutas para que o Estado fosse, finalmente, laico. Na composição de Dilma, ateus e os homossexuais, só para citar dois grupos mais visíveis, ficam de fora. Entretanto, são igualmente cidadãos.

Avançamos na discussão sobre o aborto, visto como um problema real de saúde pública da mulher. Esperava que Dilma fosse coerente. Marina Silva, ela, sim, religiosa, teve muito mais coerência e sensibilidade. Altamente democrática, propôs um plebiscito sobre temas controversos, abrindo possibilidade para o diálogo, no lugar de impor suas crenças. Talvez aí resida a melhor modernidade de Marina e sua mais importante contibuição à democracia do País.

As posturas de Dilma, e não o falatório a seu respeito, não a disseminação de calúnias, me fizeram repensar. Não sou o tipo de pessoa que acha que, para gostar de um candidato, precisamos ver o demônio no outro. Assim, respeito o legado do PSDB e aprecio José Serra, mesmo votando em Marina. No segundo turno, meu voto seria de Dilma, talvez pela comodidade de deixar tudo como está. No entanto, seria uma violência contra a democracia e contra a laicidade do Estado colocar no poder uma pessoa que muda conforme sopram os ventos eleitorais. Dilma perdeu meu voto e o de minha família não pelo que dizem dela, mas pelo que suas atitudes dizem de si mesma. É constrangedor voltar à Idade Média.

Cássia Janeiro

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Flor de Caminho - Cássia Janeiro


 
Há de nascer uma flor de lótus
No meio
Do caminho.



Há de nascer uma flor de lótus
Permanente
Para que a gente suporte,
Para que a gente se importe
Com o que está à nossa frente.

Há de nascer uma flor de lótus
Permanente
Para que a gente suporte,
Para que a gente se importe
Com o que está escondido,
Longe do nosso umbigo,
No mesmo cordão umbilical.


Há de nascer uma flor de lótus
Permanente
Para que a gente suporte,
Para que a gente se importe
E não ache mais normal
Ver criança no sinal,
Sinalizando a lembrança do que
Não teve,
De quem não chegou a ser.

Há de nascer uma flor de lótus
Permanente
Para que a gente suporte,
Para que a gente se importe e
Lembre:



O caminho do meio
Não é
O meio do caminho.


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Nós somos grandes mentirosos - em homenagem a Federico Fellini

Meu amigo Zechin, grande poeta, escritor e ser humano, escreve o seguinte poema:

Eu não entendo as palavras escritas
As palavras faladas me são inaudíveis
Eu só entendo o silêncio
A linguagem das pedras e raízes
Eu não sei como algo pode
Parecer o que não é
As imagens oníricas dos espelhos
Eu não sei como chegar ao inatingível
Nós somos o que escondemos
Eu pertenço aos meus segredos.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

As crianças da Praça da Sé

Naquele banco há uma
Mancha.
Disforme, em meio à inocência e à cola,
Ela ri
O riso dos famintos,
O riso sujo
Nosso de cada dia.

Crianças criadas
Pela rua,
Crianças crescidas,
Não nascidas,
Crianças mortas
No ventre nosso.

Poema da tua ausência

Um poema de amor na tua
Ausência
É mostrar a dor nua com
Inocência.
É falar dessa dor que não
Sinto
E que me dói por não
Senti-la.
Será essa uma mentira
Inacabada?
Será essa dor insuportável
Incapaz de sentir-se?

Um poema de amor na tua
Ausência
É uma vã tentativa
De te ver ali, imóvel,
E de te amar na sombra
Que ficou em mim.